Entre flores e origamis Hong Kong vive o luto em véspera de eleições

Os habitantes de Hong Kong são chamados às urnas este domingo, pouco mais de uma semana depois do trágico incêndio em Wang Fuk que tirou a vida a pelo menos 159 pessoas. Moradores e voluntários falam num silêncio institucional e pedem respostas.

João Santos Costa - RTP /
Tyrone Siu - Reuters

Somam-se as flores nos jardins, nos passeios e ao longo do rio Tai Po, que dá nome à região de Hong Kong onde, há pouco mais de uma semana, a tragédia chegou aos habitantes do complexo de Wang Fuk. O perfume é intenso, mas não abafa o cheiro a fumo.As oito torres destacam-se por ser as mais altas nas redondezas e sete delas estão total ou parcialmente destruídas. As chamas não deram tréguas durante mais de 48 horas.

Dennis Chang vive ao lado do complexo residencial onde até há poucos dias viviam mais de quatro mil pessoas. “Ouvi quando o bambu rachou”, recorda. “Foi aí que saí e vi o início do incêndio”. Descreve num inglês quase perfeito, herança de mais de um século de administração britânica, como tudo se alastrou de forma quase imediata. Vai culpando o vento, o Governo e, no fim, até Deus. “É a pior tragédia de sempre em Hong Kong”, garante, num estado de espírito que, nas palavras do mesmo, oscila entre o choque e a tristeza.

É essa amálgama de emoções que preenche o jardim comunitário em frente aos edifícios. O espaço tornou-se nos últimos dias uma espécie de memorial, junto às fitas e baias das autoridades que impedem o acesso mais próximo ao local do acidente, onde ainda decorrem trabalhos de peritagem e investigação. Pelo menos 159 pessoas morreram, outras três dezenas estão ainda desaparecidas. Todos os restantes habitantes foram retirados dos prédios e aguardam realojamento temporário.
Telejornal | 6 de dezembro de 2025

Fora das cinzas, na relva, a cidade responde com pequenos gestos. Os muros e postes são cobertos com listas improvisadas — contactos, endereços, nomes — de pessoas que vão oferecendo o que podem. Há quem se ofereça para lavar roupa, há quem esteja disponível para albergar famílias e há até quem ofereça serviços profissionais: advogados, por exemplo.

As paredes tornaram-se diários públicos de dor com cartazes e mensagens de condolências, até algumas palavras de revolta e acusações, protegidas no anonimato do papel.Nos grupos de apoio nas redes sociais, abertos sobretudo por jovens, procura-se consolo, partilha-se trauma e organiza-se assistência, que muitos dizem estar em falta por parte das autoridades competentes.


Milhares de pessoas vão passando por este espaço durante o dia, vigiadas tranquilamente por elementos da polícia e do exército que vão mantendo a distância dos habitantes. Deixam flores, sobretudo brancas, símbolos de inocência e virtude.

É no meio delas que encontramos Gloria, que vai fazendo com algumas pessoas pássaros de origami, pendurados numa corda, uma espécie de homenagem aos animais de estimação que perderam a vida no incêndio. As ruas estão também cobertas de pedidos de ajuda a localizar animais. “Sentimos alguma raiva quanto ao Governo”, admite. “Havia muito dinheiro envolvido nestes processos de reabilitação. Isso é corrupção”, acusa.

No mesmo grupo, Iris, uma arquiteta de Hong Kong emigrada nos Estados Unidos, acha que as pessoas “só querem saber a verdade” e diz que há sentimentos comuns a muitos dos que ali se juntam. “Querem saber o que aconteceu e como aconteceu e como pode ser prevenido, especialmente quando há tantos arranha-céus em Hong Kong”, explica.

Este movimento inorgânico surgiu da organização de Sarah Lam, uma jovem estudante de psicologia que quis garantir apoio emocional aos sobreviventes e familiares. Fala-nos de um silêncio institucional, de um certo abandono. “Tantas pessoas perderam familiares. E até agora, esta semana toda, não receberam nenhum tipo de apoio de alojamento”, nem um contacto de assistentes sociais.

É um contrapeso que tende cada vez mais para o lado do poder. Sob o pretexto de prevenir “tumultos sociais” e por um alegado respeito às vítimas, os candidatos às legislativas deixaram a tragédia de fora dos debates eleitorais. Para os moradores de Tai Po, o que paira é cinismo. Nas ruas sussuram-se acusações, mas são poucos os que acedem a falar aos jornalistas — sobretudo estrangeiros.Há um certo medo de represálias, depois de nos últimos dias terem sido detidos manifestantes em contextos exatamente iguais a este.

O Governo decidiu manter as eleições legislativas agendadas para 7 de dezembro.

Desde a reforma do sistema eleitoral imposta por Pequim em 2021, as regras mudaram profundamente. O Parlamento foi ampliado para 90 lugares, mas o número de deputados eleitos diretamente pelos cidadãos reduziu. Apenas 20 mandatos são preenchidos pelo voto direto. Os restantes assentos resultam de eleições funcionais, ligadas a setores profissionais, e de nomeações através de um corpo executivo central. Por isso, e embora as urnas estejam prestes a abrir, muitos não consideram que as eleições sejam livres ou justas.

A recente tragédia em Tai Po despertou uma onde de indignação pública. Critica-se a falha na supervisão de segurança dos prédios e pede-se transparência. À RTP, um dos voluntários neste jardim que preferia não ser entrevistado, defendia que este é um momento de inflexão política. Contudo, o receio entre a população é de que a memória se desvaneça rápido demais e que as eleições prossigam sem que haja uma prestação de contas, deixando em aberto as feridas de ordem pessoal e coletiva. A resposta do Governo tem sido acelerar o processo de investigação ao acidente: mais de 15 pessoas foram detidas por suspeitas de envolvimento negligente no incêndio.

"Espero que os sobreviventes e aqueles que perderam os seus entes queridos consigam continuar a viver as suas vidas como os que morreram as viveriam", diz Dennis Chang.

Para quem tudo perdeu, não só a casa mas a confiança nas instituições, votar pode parecer um gesto insuficiente. Mas o relógio político avança e a urna aproxima-se. As autoridades chinesas em Hong Kong dizem que há “forças externas” a tentar tirar proveito político de uma tragédia.
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